Em uma busca nas "news" do Google pela expressão "craftsmanship fashion", retornam mais de 118 mil links em inglês. Reduzindo para um ano, passa fácil de alguns milhares de postagens, que trazem artigos muito diversos: o novo artesanato, tradições artesanais, artesanato com tecnologia, o hub de artesanato da Chanel (que já apresentamos no instagram), vagas de trabalho que pedem artesãos altamente qualificados, exposições de moda que mostram os bastidores ou a técnica detalhadamente, a presença do trabalho artesanal nas grandes passarelas de Paris e Milão etc. etc. São incontáveis as notícias que comprovam o que só não vê quem não quer: é a hora e a vez do artesanato na moda, entre uma tendência a mais, um grande negócio ou uma mudança de rumo na moda.
Porém, surpresa: ao fazer a mesma busca em português (moda artesanato), o primeiro fato curioso é que o Google sugere uma alteração para "mdf artesanato" que, pra quem não sabe, trata-se daquelas peças de um tipo de madeira compensada que pintamos e decoramos para criar de caixinhas de joias a molduras de espelhos (obviamente o Google está certo: ele sugere o que mais as pessoas conhecem.) Além disso, surgem alguns links sobre manualidades na moda e, ficamos super felizes, nosso curso Moda + Artesanato ranqueia na segunda posição. Mas um fato curioso, que não nos choca, também é indicado pela busca do Google no Brasil. Ao selecionar apenas as notícias, ou seja, matérias em sites sobre o assunto moda artesanato, o retorno nos dá uma vez mais o caminho mais curto, que é o de entender o papel do artesanato na moda como uma atividade paralela, um hobby, parte da economia informal ou na melhor das hipóteses do microempreendedorismo. Quando isso vai mudar?
Artesanato e moda: a história de um divórcio
Até o fim da Segunda Guerra Mundial, a grande parte de nossas roupas era produzida por um sistema artesanal. O prêt-à-porter não estava tão difundido nem estruturado e tampouco gozava do prestígio que tem hoje em dia. O império das marcas não existia e mesmo o calendário da moda, conectado a diversas ações que fazem o sistema funcionar, limitava-se às estações do ano. Embora a produção das roupas ainda fosse "artesanal", obviamente, tecidos, rendas, as estampas, botões etc., eram fornecidos por indústrias que reproduziam em série modelos que tinham sido pensados a partir de técnicas e ferramentas artesanais. Imagine os botões, por exemplo. Botões de resina imitavam incrustações, madeiras, pérolas ... O artesanato estava lá presente, mas na forma de "modelo" ou "padrão" a ser seguido.
Ocorre que a ideologia da máquina e do progresso que tanto marca tudo o que vem depois daqueles anos, pretendeu omitir os rastros da presença artesanal na moda. Não vamos nos alongar, mas podemos citar muitos exemplos: o anonimato por trás de quem criou ou fez as roupas vendidas nas lojas, a numeração das peças segundo corpos padronizados, o gosto geral conduzido pelo início das tendências impostas pelas revistas, a novidade sempre considerada melhor e a roupa do ano passado, vista como velha, ultrapassada e sem valor.
O artesanato, como podemos imaginar, perdeu sua visibilidade e valor, restringindo-se a mães e avós que, em suas casas, faziam alguns “trabalhos femininos” e, no máximo, costurando roupas para crianças. A partir da adolescência, ninguém mais queria que sua roupa parecesse “feita em casa.”
O que pouca gente se lembra, contudo, é que a atividade artesanal por trás dessa indústria toda nunca deixou de existir. A criação, o desenho, a modelagem, o desenvolvimento de protótipos e assim por diante são parte indissociável de qualquer marca com aparência digital e do mundo do metaverso ainda hoje e só esteve encoberto todo este tempo. Agora, finalmente, a nuvem está se movendo e podemos (e queremos) ver, tudo o que está na raiz daquilo que desejamos. Este é o grande negócio da moda do futuro!
Sinais dos tempos No nosso curso Os Segredos do Italian Style, sempre contamos curiosidades e sacadas por trás das marcas italianas e, uma delas, é a da Versace. Para quem não sabe foi Gianni Versace quem “inventou” o conceito de supermodels e transformou suas modelos em celebridades. No fim de seus desfiles, ele aparecia acompanhado das mais maravilhosas de todas dando uma última volta na passarela, procedimento que era bastante comum lá nos idos dos anos 1990. Falamos dos tempos do poder da imagem de moda.
Mas, agora, os tempos são outros. Nos desfiles de junho (2022), Pierpaolo Piccioli, o diretor criativo da Valentino, no fim de seu desfile desce a escadaria da Piazza de Spagna em Roma de mãos dadas e acompanhado de toda a sua equipe dos laboratórios. Ninguém menos que as “anônimas” artesãs que fazem a Alta Costura acontecer.
A curiosidade por trás dessa atitude? Trinta anos depois, Piccioli reconhecia o valor do trabalho dessas mãos e mentes, assim como já tinha feito Valentino, em 1985, na mesma escadaria (imagem do instagram abaixo).
É nessa onda de valorização de mãos e saberes nomeados heritage – o patrimônio tangível e intangível de uma marca ou criador -, que vemos se espalhar e trazer resultados expressivos para o mundo dos negócios da moda, o trabalho artesanal. Por um lado, a valorização das marcas que conseguem preservar linhas de produtos artesanais ou, por meio da tecnologia artesanal, manter a qualidade e a sofisticação dessa essência e, por outro, novas e pequenas marcas que já surgem inserindo, por meio de pesquisas e colaborações o artesanato em sua essência, vemos como se abre uma brecha para pensar o artesanato na moda dentro de uma sociedade industrializada. O que significa isso? Principalmente deixar o romantismo que muitas vezes ronda a atividade artesanal na moda e partir para o que realmente importa: criar seu lugar no mercado de consumidores, só assim ele poderá sobreviver. O que o Google nos conta? Que o artesanato é um grande negócio!
Com certeza, ele está certo. O artesanato está bombando como uma tendência presente na triste Shein, assim como na Alta Costura .... Já leu nosso post sobre o le19M da Chanel? O crescimento da valorização do artesanato na moda é nítido na medida em que a mídia internacional tem dado atenção ao assunto, mas não só isso. Ele é a narrativa de uma parte significante das coleções, das exposições, dos profissionais. Isso tudo vai criando uma abertura de mentalidade que começa a perceber essa “tendência” não só entre a Geração Z, como se dizia quando ainda estávamos em 2020 presos em nossas casas. O artesanato de alta qualidade (ou Alto Artesanato como chamamos na Itália) é um grande negócio.
Vamos aos pontos principais dessa ideia. A primeira tem a ver com a questão da sustentabilidade. Como sabemos, os consumidores estão se movendo em direção a marcas mais sustentáveis e a atividade artesanal pode sim ser um dos componentes da moda mais sustentável em aspectos bem técnicos, mas sobretudo dentro da dimensão do trabalho (sustentabilidade social).
A segunda é estética. Isso é visto nas famigeradas marcas que “imitam” o artesanato em suas coleções, mas também nas marcas mais sofisticadas que querem sair do lugar comum e ir atrás de identidade e originalidade. Uma vez que as técnicas artesanais não estão programadas por máquinas de seriar, isso é bem possível.
Em terceiro lugar, temos a questão do valor e da essência. Nosso momento é de storytellings, ou seja, “as pessoas não compram o produto que você faz, mas a história que você conta” como diria Seth Godin, especialista no assunto. E quais as histórias que a gente gosta de ouvir? Sobre pessoas .... neste caso, os artesãos e artesãs.
Um mundo muito menos hierarquizado na moda, ainda utópico mas possível, entraria em quarto lugar de motivações. Por que? O que temos visto por aqui, é que a chegada de novos designers aos holofotes da moda, por meio de colaborações, parcerias ou mesmo como pequenos empreendedores, é possível dentro desse universo. Afinal, é mais complicado competir em equipamentos, estruturas etc., mas super viável quando falamos do trabalho humano organizado. Não é por acaso, por exemplo, que vemos crescer as marcas ou lojas consagradas de moda na Europa que buscam produtos originais e exclusivos.
Como entrar nesse universo: moda + artesanato Se você tem mais de trinta anos de idade, com certeza não foi preparada na universidade para dialogar com esses novos atores: os artesãos. Costumávamos aprender fotografia de moda, marketing de moda, planejamento de coleções e softwares mil, mas, na real, pouco se sabia desse “outro mundo”. No máximo, era algo temático, para desenvolver uma estampa .... sempre copiada com a desculpa da “inspiração.”
Por essa razão, é necessário recomeçar, pensando como é a dimensão do trabalho artesanal inserido em um mundo industrial.
1. Refletir sobre o âmbito do trabalho humano
2. Pensar questões de direito e patrimônio sobre as criações, protegê-las e, também, não infringir as leis
3. Entender como inserir a lógica do trabalho artesanal dentro do mercado acostumado ao sistema industrial
4. Perceber que o artesanato é algo contemporâneo, que o projeto é relevante para o negócio dar certo; em resumo, não se trata de fazer o que gosto ou o que sei
5. Levar o artesanato ao status de luxo, ampliar seu valor, receber reconhecimento. O artesanato não tem como competir com produtos “cuspidos aos milhares” pelas máquinas. Ele tem que encontrar o seu lugar na moda.
Ah, finalizando! Se você olhar o perfil do grande Pierpaolo Piccioli, verá que as fotos nas quais ele aparece com suas artesãs, são as que têm mais likes. Coincidência? Não .... o Google realmente está certo!
Comments